Escolhas são como canoas que a gente embarca
Sabe aqueles contos gostosos de ler? Aqueles que fazem a gente pensar na vida, nos amores e amigos de maneira instantânea, sem precisar de esforço para isso? Guimarães Rosa sabe fazer isso muito bem e o conto "A terceira margem do rio" tem força suficiente para tirar qualquer um de sua acomodação e alienação. É um texto que leio e releio desde quando o conheci.
Quero reproduzir aqui essa história e algumas coisas que ela me fez pensar melhor. Bem do meu jeito é claro, já que “quem conta um conto aumenta um ponto”, vou aproveitar e dar um sabor catarinense para "A terceira margem do rio".
Uma família comum, pais e filhos convivendo numa casinha com um rio atrás dela. A mãe sempre dedicada. O pai quieto, positivo, ordeiro, pacífico. Tinham dois meninos e uma menina.
Certa fez deu uma maluquice no pai e ele saiu para comprar uma canoa. E comprou uma bem dura e forte para durar uns vinte ou trinta anos. Saiu de casa sem dizer nada, apenas deixou o lar e foi para o rio; e ficava ali pertinho de sua casa, remando, remando e remando sem encostar nem por um momento sequer em terra firme. Um dos filhos, quando ele estava partindo, disse: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" E o pai não disse nada, na sua canoa ninguém entrava. Saiu e como eu disse, entrou no rio e ficou ali remando sem parar.
A atitude do pai era estranha demais. Dia e noite, sol e chuva, frio e calor, não importava. Lá estava ele indo e vindo remando no rio. Os vizinhos e parentes pensaram que era promessa ou doença, como a lepra. Que nada! Ele ficava lá porque fez sua opção. No começo, a família até se preocupou. Gritou. Esperou. Chamou padre, vizinho, filhos, parentes, e ninguém fez o pai desistir da idéia de ficar ali, na sua ilha-canoa isolado do mundo, contradizendo as regras, remando e remando às vezes contra, às vezes a favor da maré.
Passaram-se noites, dias, meses, anos. Como disse o próprio Guimarães Rosa, "os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos" e nada. A família desistiu de lutar pelo pai, que se transformara numa ilha-canoa. Acostumaram-se com aquela situação e, com esse tempo mutante acabaram mudando de onde residiam. A irmã casou, levou a mãe e um dos irmãos foi para outro lugar. Restou somente um filho, aquele que dava comida ao pai.
O filho que permaneceu, finalmente percebe que os anos passaram e o pai está ali, na canoa, velho, com cabelos brancos e debilitado. Oferece-se para ficar no lugar dele: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." o pai concorda, acena com a mão, faz gestos nunca antes realizados, mas o filho percebendo a aceitação do pai, foge enlouquecidamente. Depois daquela fuga, nunca mais viu o pai. E fica "pedindo, pedindo, pedindo um perdão."
Esse conto me fez pensar em como desistimos facilmente de nossos sonhos. Desistimos dos sonhos pessoais, familiares e afetivos por pouco ou quase nada. Desistimos das pessoas na primeira tentativa de ajudá-las. Desistimos das amizades, porque elas não correspondem às nossas expectativas de visão de mundo e relacionamentos.
"Essa nunca vai mudar, não tem jeito mesmo, estou cansado de tentar ajudar, é enfadonho, é isso, é aquilo outro"; desculpas e mais desculpas de quem quer pensar só em si mesmo e esquece o outro que está na outra margem. O outro fica lá, na "terceira margem", discriminado, porque na cabeça dos que deveriam ajudá-lo é marginal, não se encaixa, e marginalizado permanece, quem sabe na angústia de receber a ajuda sincera de alguém como esse filho do conto de Guimarães Rosa; filho que tem a coragem de alimentar o pai, que outrora era útil, mas porque quis remar contra a rotina da vida, fazendo a família refletir sobre sua maneira de aproveitar o tempo, acabou sendo esquecido por amigos, filhos e mulher...
A família tentou se aproximar mas a forma com que tentavam buscar o pai em seu isolamento no rio não era a melhor. E com o passar dos dias acabaram seguindo seus sonhos pessoais, e esquecendo do pai, que os fez pensar na vida que levavam num primeiro momento, porém a rotina e o egoísmo foram mais fortes que os laços familiares e amistosos.
Esse filho, que é o narrador da história foi corajoso propondo ao pai uma troca de papéis. O pai consentiu, finalmente alguém atingira o seu coração isolado pela angústia de ser diferente. Para a surpresa de quem lê e do pai daquela história, o filho ao invés de tomar o lugar do pai na canoa, foge! E fugindo acaba com as esperanças desse pai que também foge para nunca mais voltar. Eternos fugitivos esquecem que os problemas, e os problemas assim como eles, gostam de viajar e os acompanham até que cumpram seu papel em suas vidas.
Pessoas vêm e vão na nossa vida assim como as águas do rio que mudam sempre. Palavras, rios, amores, pais, filhos, traumas, isolamentos e canoas. Escolhas são como canoas que a gente embarca.
De repente começa a pipocar na cabeça perguntas como: Em que canoa eu embarquei? A da ajuda ao outro? Ou a aquela onde eu busco prestígio, reconhecimento, fama, e me esqueço que existe um pai, um irmão, um amor, uma mãe que precisam de mim junto à sua canoa, remando, remando, remando, contra a maré?
A fama, a falta de cuidado para com o outro, o egoísmo, a vaidade, são canoas furadas. É entrar e esperar o naufrágio! Esse tipo de canoa não dura muito tempo! Eu prefiro escolher canoas fortes como o amor, o respeito, a verdade e a sinceridade, unindo tudo ao grande valor de ser família.
Um conto como esse merece outros questionamentos. Quem escapa dos meus padrões não merece atenção e afeto? O diferente perturba quem é acostumado com o igual e tem mania de padronizar sem dar oportunidade a uma discussão democrática. Falar de Jesus não é impor jeito de vestir e pensar. Falar de Jesus é propor com arte e unção, com paz e ousadia. A espada dos cristãos deve cortar pecados, nunca pessoas e suas vestes, lançando sorte sobre elas; deve expulsar demônios, nunca irmãos.
É possível falar de Deus sem se isolar numa canoa, sem ser chato, sem querer que o outro fale, vista, pense, cante, viva, e enxergue como eu. Só merece ser imitado quem consegue ser como Jesus. Defensor da verdade, e defensor das pessoas. Ele nunca desistiu de ninguém porque era desta ou daquela cultura, deste ou daquele grupo. Jesus não se importava com a roupa das pessoas, porque sabia que isso é externo e aparente. Seu olhar mudava tudo à sua volta porque via cada um com corpo, alma e coração. O importante é o que é invisível aos olhos!
O pai desse conto "A terceira margem do rio", deve ter lido o poema "Fazedor de Homens", de Carlos Drummond de Andrade, que diz:
Todo homem é uma ilha... É bom ser uma ilha distante...tanto quanto é bom ser um homem. Todo homem possui uma ponte, pois é preciso sair da ilha, seguro. A ponte de um homem é um braço estendido.
Que nenhum canoeiro fique navegando solitário e sem destino no rio da vida; que ninguém à minha volta se sinta isolado porque não tive coragem de ficar um pouco no seu lugar, de viver com ele algumas dores e alegrias. Peço a Deus que me dê forças para enfrentar situações difíceis e nunca fugir das oportunidades que tenho em ser auxílio e conforto para o próximo, Quero construir muitas pontes, reformar aqueles que com o tempo foram se desgastando, vou ser ponte, vou ser fonte de amor e paz que vem de Deus.
Se for preciso remar, remar, e remar contra a maré, eu vou, e vou feliz, na certeza de que a minha canoa não é furada. É forte, porque tem amor, tem Deus, tem amigos, arte, unção, respeito, vontade de falar da melhor forma de Cristo e claro, muita poesia!
(Diego Fernandes)
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